Moro e vivo em São Paulo. E, sim, envelheço na cidade. Não que eu não fosse envelhecer em qualquer outro lugar - por mais que alguns seriados de TV insistam em dizer "não envelheceria!" - mas é que em São Paulo é diferente. Aqui envelhecemos mais depressa. E antes que bata aquela vontade de dizer que voce esqueceu aquele velho frango no forno, caro leitor, permita-me explicar.
Por algum retardo no meu processo mental normal, provavelmente causado pelo rotavírus que alegremente resolvi incubar desde o último sábado, e o qual, em homenagem a um dos mais promissores candidatos a vencer o concurso de Cão Mais Feio do Mundo 2009, apelidei de Squiggy, hoje eu vi. Não só vi, como enxerguei, observei, absorvi, analisei e, finalmente, sintetizei e escrevi. Caso voces não tenham notado antes, em meu estado natural sou preguiçoso demais pra executar esses dois últimos itens.
Esse meu dia singular começou com uma tentativa frustrada e rotineira do meu rádio relógio se desesperando pra me ver acordado, pois havia muito trabalho sujo a fazer e alguém que tinha dormido às 3:30h da manhã é que tinha que fazê-lo. Nem vale contar isso como começo de um dia especial, mas seria injusto não citar o cara que mais trabalha nessa cidade, o radio relógio. Claro que mandei ele dormir até o dia seguinte, como eu gostaria que alguém fizesse comigo naquela hora. Volto a cama. Pouco mais de meia hora depois, sou açoitado por um dedo descuidado pressionando o botão do meu interfone de casa. Esse não é um botão pra se apertar às 8h da manhã. Ele fica preso. E tocando pra sempre. Tem que ter o cacoete pra despressionar. Olho na janela e tem um moleque de boné no portão. Ele provavelmente sabia que estava incomodando alguém e parecia fazer isso com muito prazer então atendi logo e perguntei QUEM É?, pergunta que ele sabia a resposta de cor e lançou que era do Wal-Mart, com uma entrega pra mim, de um pedido que eu tinha feita menos de 12 horas antes pela internet. Pasmei. Ele não podia subir então avisei que ia descer e desliguei. Sabia que ia ter que descer de qualquer jeito pra desgrudar a porra do botão. Pasmei de novo. Ele tinha o tal cacoete. Resolvida a questão, a Ju já estava acordada também, o dia tinha começado.
Não lembro porque diabos a Ju cantarola o refrão de A Cidade, do Chico Science.
Meu vídeo a respeito.
Vamos ao trabalho. Peguei o caminho das Avenidas Pacaembú e Sumaré, que ultimamente têm se mostrado muito competentes na arte de se desviar do trânsito pouco fluído de São Paulo. Parado na Sumaré, mas bem próximo de seu fim, dou uma olhadinha sacana no retrovisor pra ver se meu coleguinha de trabalho, Sr. Daniel, passaria de moto na pista exclusiva - não sei o que eu faria se o visse, mas provavelmente ele iria se esborrachar inteiro - mas no lugar dele, como um flash de uma fotografia imperdível, vejo um motoqueiro a uns 50km/h desviar, com uma habilidade técnica que só os mais antigos samurais poderiam ter ensinado, de uma senhora que resolveu pregar-lhe uma peça, atravessando a avenida no meio dos carros, fora da faixa e com uma sacolinha na mão. Foi tanta destreza que o cara deve ter achado que gastou toda a sorte que ele tinha acumulado ao longo dos últimos 15 anos não atropelando aquela maldita infratora de cabelos brancos. Nos 50 metros seguintes, ele ficou olhando pra trás, berrando e mexendo os braços. Ele provavelmente proferia palavras carinhosas de agradecimento pela grata surpresa e pela oportunidade única de demonstrar seus talentos em público.
Trabalho é trabalho. Aposto que em todo lugar é igual. A gente chega, troca uma idéia com um funcionário do prédio, faz uma piadinha com os porteiros, entra, dá bom dia - ou resmunga, como é o meu caso. Durante o dia a gente toma alguns cafés, troca mais algumas idéias com quem estiver disponível, faz alguma coisa pra preencher aquele horário entre a chegada e a hora de cair fora - já que alguém resolveu te pagar pra isso - e entre isso tudo tem a hora do almoço, uma das horas mais aguardadas pelo homem enquanto ser social participativo do mercado de trabalho.
A magia, a beleza, o diferencial que faz da hora do almoço um lugar diferente dos outros não tem nada (ou quase nada) a ver com a comida. A hora do almoço é abençoado não por algo que ele é, mas sim pelo seu incomparável potencial. É o cume do processo de troca de idéias. É um grande mercado de trocas, sem distinção de cor, raça, credo, religião, espécie, idade, sexo, etc. A única obstrução a esse processo, e isso deve ser rigorosamente observado, é a legalidade dos elementos. Se seu companheiro de almoço é um chato, seu cume vira um montinho, geralmente de merda. Nesse caso, a troca de idéias é pobre e a glória da hora do almoço definha. Cabe a voce, elemento legal, salvar sua hora de almoço e recuperar seu infinito potencial, antes que voce tenha que contar pro chato que ele é um chato. E, meu amigo, isso deve ser chato pra caralho. Melhor voltar ao assunto.
Numa dessas trocas de idéias, Sr. Daniel me contou que sábado ele esteve na Avenida Paulista - tá aqui a foto 3x4 do pai da Ju que não me deixa mentir - e que havia sido uma experiência muito positiva, aquilo que ele chamou de Programa Gracinha. Ele foi ao cinema, passou no Bob's pra dar uma conferida no sanduiche de cheddar - "E ele viu que era ruim." - e caminhou com seu mp3 no ouvido, cantarolando, meio encabulado por achar que pudesse parecer ulguma espécie de doente mental - e tenho certeza que parecia - , mas notou que haviam outros. Sim, outras pessoas! E pelo que ele contou elas estavam com seus mp3 em seus ouvidos e se permitiam até a algumas pequenas acrobacias imaginárias, arriscavam um rebolado, uma arranhada na garganta, assim, sem pudores. Foi daí que "ele viu que era bom".
Chamo atenção a esse fato meus bravos leitores de até aqui, não porque eles não tinham pudores, mas porque o Sr. Daniel foi sozinho na Paulista, sozinho ao cinema, sozinho no Bob's. Tudo sozinho, apesar das cerca de 1.000.000 de pedestres que circulam pelo local todos os dias - esse número deve cair um pouco aos sábados, mas quem se importa? - , e ele só se deu conta das demais pessoas em seu momento de maior introspecção na caminhada. Sua solidão terminou assim que ele se percebeu sozinho. Reserve.
Ainda hoje, depois da doce labuta, iniciei meu processo diário de retorno ao lar. Peguei minha jaqueta, carteira, chaves de casa e o Squiggy e fomos todos ao ponto de ônibus da Rebouças. Estava meio tonto e lerdo por causa do Squiggy, meio indiferente a qualquer coisa que fosse. Tentei ficar alegre quando vi o ponto meio vazio - o que é raro praquele ponto - mas continuei indiferente. Fiquei uns 5 minutos sentado no ponto esperando um onibus um pouco mais distante terminar de lotar e eis que pra minha alegria, eu estava lerdo. Eu explico. O ônibus que estava tecnicamente parado e lotando, não estava realmente lotando. Estava realmente parado e só. Não funcionava. Andei uns 6 passos a frente na direção do coletivo e vi onde estava todo mundo. Aproximadamente 50 pessoas no fim da extensão do ponto. Pensei: Rá! Eu sabia que o ponto não estava vazio! (Alegria!) Na sequencia da cena, meu onibus sai de trás do quebrado e toma rumo pelo corredor, tirando toda e qualquer chance de eu me esgoelar correndo pra que ele parasse - coisa que eu não faria nem se ele estivesse parado. Depois desse ônibus, nenhum outro conseguiu passar por ali. A CET tava cuidando de tudo direitinho, como eles sempre fazem. Perguntei pro Squiggy se ele aguentava ir até o próximo ponto, aquele estava muito cheio. Ele não viu problema, então fomos. Chegamos lá, descansamos na guia rebaixada pra deficientes e carrinhos de feira e esperamos. Nada. Por muito tempo. Squiggy dá uma adormecida e eu resolvo ir andando até a Consolação, o que me fez incrivelmente bem. Foi mágico! Pra alegria dos leitores de até aqui, foi aí que eu resolvi escrever hoje. Quando desci a Consolação até a Maria Antônia, vi mulheres correndo em saltos pontiagudos, homens em ternos caros buscando olhadinhas em bundinhas desprevenidas, pessoas correndo e arrastando crianças pelo farol, taxista xingando taxista de 3 palavrões ao mesmo tempo enquanto faz uma curva a 60 km/h pra entrar na Consolação. Puro desespero. Pura Adrenalina. Minha jornada já se aproximava de um final, mas o destino ainda reservava uns temperos. Segue.
Peguei o Perdizes, escolha óbvia, eu sei disso e é isso que importa. Lá dentro, todos os 28 passageiros mantinham firmes suas caras de desgosto com a vida como forma de proteger sua bolha imaginária de algum(a) engraçadinho(a) metido(a) a simpático(a) que tentasse puxar uma conversinha de fim de dia - não era hora do almoço. Me recosto à porta que não iria abrir tão cedo e observo. Squiggy estava meio acordado. Tempero 1: Logo no primeiro ponto depois da saída, uma moça com cara de susto quer levantar pra descer, mas tinha dado o incrível azar de sentar na janela, ao lado de um cara muito estranho, mas muito muito cansado. Ele dormia. Ela levanta, faz cara de angústia e murmura carinhosamente "moço". Nada. A angústia aumenta e ela leva as pontas dos dedos no meio da testa e senta. Fecha os olhos, abre, levanta de novo e manda mais um "moço". O livro se chamaria "A Angústia Sem Fim", se ficasse nisso, mas não ficou, pois na sequencia, ela manda um "MOÇO!". Ele acorda com o susto da moça com cara de susto. Ele retrai as pernas, ela sai e desce. Notem, toda essa angústia, pra não encostar no indivíduo, o que poderia ferir o contrato social da bolha imaginária. Tempero 2: Uma moça japonesa sentada no banco do corredor japonesamente tranquila de repente leva de um passante um pequeno coquinho (pequeno mesmo, um toque) na cabeça. A reação dela lembrou a do Dentinho sempre que um zagueiro tenta chegar perto dele. Mas ela reclamou com ele? Ao menos olhou pra ele? Nããão. E ele? Se desculpou? Idem. No final, todos bem? A vida continua? Alguém vai lembrar disso 5 minutos depois? Siiiiiiim. Siiiiiiiim. Nããããão. Em ordem respectiva.
É disso que se trata, caríssimo e heróico leitor de até aqui. Caos, prazer, amizade, respeito, humor (os dois), velocidade,desafio, decepção, criatividade, alegria, solidão, conexão, tempo, bolhas e Squiggy. Tudo isso são, em uma verdade minha, elementos que fazem uma vida passar com a certeza de uma vasta experiência. Uma que só se ganha em 1 dia em São Paulo. Uma que ganha-se em 1 só dia em São Paulo. Se digo que envelheço na cidade, digo isso com a arrogância e estupidez de um velho experiente, mas que ainda é jovem e aguenta muito mais. Dostoiévski disse uma vez que existem cidade meditativas e não-meditativas. Ao meu ver, São Paulo entraria numa terceira classificação: Ritmicaóticas.
Para encerrar, fica a crítica abertamente destrutiva de que essas malditas leis anti-fumo anti-bebida e anti-moto que acabaram de aprovar trazem uma triste tendência de ordem ao saudável caos que tanto prezamos. Visam destruir tudo que construíram aqui, com o suor dos escravos, dos nordestinos e, mais atualmente, dos bolivianos. Quem chega aqui e se depara com o caos de uma das maiores metrópoles do mundo, um caos que fortifica e diversifica, vive em um dia o que nenhum idiota viverá em uma vida inteira em qualquer outro buraco do país. Por isso, é dever desses filhos de uma porca suja fazerem alguma coisa pelo resto. Deixa que a gente se vira por aqui. E esse último parágrafo é porque eu fumo, bebo e tô muito a fim de comprar uma moto.
Pronto, Squiggy, falei.